A nova desordem internacional



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Durante as últimas décadas, o Ocidente acreditou que a ordem internacional construída no pós-II Guerra Mundial e no rescaldo da Queda do Muro de Berlim, cujas bases assentam num conjunto de princípios liberais das relações internacionais do respeito pelo Direito Internacional, seria inquestionável - Fukuyama chegou a considerar este como “o fim da História”. A criação de instituições e fóruns de debate internacionais; de cooperação e interdependência política e económica; seriam suficientes para absorver choques e tensões, e assim prevenir qualquer tentativa de conquistas imperialistas que poderiam reavivar os piores momentos da História da Humanidade.

A invasão da Ucrânia pela Rússia veio provar, para o espanto de alguns, que muitos dos pressupostos modernos que norteavam as relações internacionais - dados como adquiridos ao longo das últimas décadas - já não refletiam a relação de forças e a realidade das trocas económica do mundo atual. Mais complexo e mais imprevisível: este é o estado do mundo no qual vivemos atualmente, com um reforço substancial de países autocráticos, que nutrem uma especial desconfiança pelo Ocidente. O confronto crescente entre democracias liberais e autocracias não é novo. Se os regimes autocráticos Russo e Chinês gozam do poder que têm, é em grande por terem sabido, com grande habilidade, tirar proveito de uma certa ingenuidade das lideranças políticas e de um sistema económico e financeiro globalizados que não olha a regimes políticos e que pouco se importa com valores ou respeito pelos direitos humanos.

“Wandel durch Handel”. Durante anos, as democracias ocidentais, e especialmente a UE, nortearam grande parte da sua ação externa no princípio da “mudança através do comércio”, esperando que o reforço da interdependência económica seria uma alavanca determinante para orientar a Rússia e a China para o caminho da democracia (mesmo que imperfeita). O estado atual das relações internacionais é impiedoso: nem a Rússia se tornou mais democrática, nem a China com a sua estratégia dos dois sistemas se tornou menos autoritária - bem pelo contrário. A adesão a instituições internacionais liberais não resolveu qualquer problema. Aliás, esta mesma adesão acelerou a deslocação da balança do poder para o Oriente, especialmente desde a entrada da China na OMC.

A hegemonia dos EUA, que ficou seriamente afetada desde as guerras desastradas no Iraque e Afeganistão, veio consolidar o reequilíbrio de forças e de influência política entre Ocidente e Oriente. Enquanto os Estados-Unidos estavam ocupados com as guerras intermináveis e teve, pelo meio, de resgatar um sistema financeiro predador que originou a grande crise de 2008-2010, a China foi reforçando, silenciosamente, o seu poderio económico, comprando ativos em empresas americanas e adquirindo, a preço de saldo, empresas europeias em setores estratégicos (a dose de austeridade europeia patrocinada por Schauble e Merkel quer uns queiram ver, ou não, contribuiu de uma forma desastrosa para a fragilizar a Europa e a sua capacidade de responder a desafios sérios globais). Em paralelo, e enquanto a Europa estava distraída a construir narrativas sobre a irresponsabilidade do Sul, e os bons alunos do Norte, a influência chinesa a nível global não parou de reforçar-se substancialmente, nomeadamente, com o lançamento da estratégia das Rotas da Seda, investindo milhões de dólares na construção de infraestruturas, a troco de acesso a mercados, em dezenas de países Africanos e na América do Sul e concluindo, em paralelo, acordos de parceria com a Rússia. O sistema internacional, uma vez multipolar, evoluiu para uma realidade uni-multipolar e, muito provavelmente, regressará nos próximos anos a um sistema bipolar, digno dos tempos da Guerra Fria. Finalmente, as instituições internacionais do pós-guerra, paralisadas pela total ausência de reformas que as capacitem para responder célere e efetivamente aos novos desafios globais, pesarão pouco na organização das relações entre países neste novo mundo - algo que deve ser visto com preocupação.

A invasão da Ucrânia veio baralhar o xadrez internacional. O anúncio recente do reforço do orçamento de defesa da China vem colocar sérias questões sobre os planos que as autoridades chinesas têm para o Mar da China - leia-se, Taiwan.

Independentemente do que poderá acontecer, importa aprendermos a lição: o reforço das autocracias foi feito com a conivência das democracias, com a sua ingenuidade e com a procura do lucro fácil. Não se moderam ditadores. Nem com dólares.

O mundo bipolar poderá estar de regresso já nos anos que se avizinham. O sistema multilateral, fragilizado por uma série de erros, terá de viver numa tensão permanente entre democracias e autocracias.

Até aqui nada de novo: a História faz questão de nos relembrar que tudo é cíclico, e que nada é adquirido. Só mudam os protagonistas.

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André Costa
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