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"Tu que dormes à noite na calçada do relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão".
Assisti, no sábado passado, ao espetáculo dado por Fernando Tordo na Casa das Artes em Arcos de Valdevez.
O tema era a poesia de José Carlos Ary dos Santos, num ambiente intimista com muito humor. Valeu e recomendo.
E porque estamos no Natal, para quem não sabe, a frase "O Natal é sempre que um homem quiser" é do versátil, irreverente e irrequieto Ary dos Santos e está num dos seus poemas.
Esta frase aparece em muitas publicidades e curiosamente, Ary era publicitário.
Ary dos Santos foi um militante incomodo do Partido Comunista por ser homossexual.
A sua poesia foi influenciada pelo poeta russo Mayakovsky que, tal como Ary, não queria que se culpasse ninguém pela sua morte e apenas queria desejar felicidades para quem cá fica.
Como já referi, Ary ganhava a vida como publicitário mas a sua vocação maior foi resistir à ditadura de Salazar, através de poemas, alguns dos quais foram cantados no festival da canção e até venceram, tais como "Desfolhada" e "Tourada".
Foi um escritor precoce e editou o seu primeiro livro com apenas quinze anos: "Asas".
Ary nasceu no seio de uma família abastada da alta burguesia lisboeta. Perdeu a mãe quando ainda era criança. O irmão suicidou-se com 18 anos e o pai voltou a casar. Muitos encontram aqui a explicação para a sua opção sexual, com recurso a Freud, Foucault e até mesmo à ideia de belo segundo a Grécia Antiga.
Apesar das suas confortáveis origens, Ary lutou incessantemente pela defesa dos mais desprotegidos e a única coisa que pedia em troca era ser amado.
Bebia e fumava compulsivamente e morreu aos 46 anos em 1984.
No espectáculo/concerto de Fernando Tordo, cantou-se Ary, contou-se histórias de vida do Ary, do Tordo e do Carlos do Carmo.
Entre cada canção, Fernando Tordo, lembrou como Ary fez da cantiga uma arma, sempre na defesa da liberdade e da sua filha, a democracia.
"A liberdade não está garantida, é uma luta diária sobre a qual não podemos adormecer", sublinhou Tordo.
No final do concerto, em conversa com Fernando Tordo, quando lhe comprava um livro, perguntei-lhe de que tinha morrido Ary dos Santos. Fernando Tordo disse-me que tinha sido de cirrose.
Então, pedi-lhe para escrever na dedicatória do livro, o seguinte:
"Para o Damião, que disse que o meu amigo Ary morreu de ternura".
Fernando Tordo escreveu, assinou e sorriu.
E porque o Natal é uma época em que nos lembramos dos mais desfavorecidos, também convém recordar aqueles que mesmo tendo nascido num berço de ouro, sempre pensaram e lutaram por quem mais precisou, independentemente das consequências para a sua integridade física e intelectual. E, isso aconteceu com Ary, que sofreu com a repressão da ditadura e de três preconceitos. Ser comunista, ter assumido a sua homossexualidade e fazer poemas cantados, algo visto como menor ao nível da produção poética e política.
No fundo, Ary pensou mais nos outros que em si.
Não sendo do povo, pensou no povo e foi, como o próprio dizia, "O poeta do povo".
Ary deu-nos uma prenda de Natal, em Abril de 74, a liberdade.
"Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser".
Peguemos nas palavras do Ary e em nome daqueles que "Inventam brinquedos e ternura para dar, bonecas e comboios de luar e mentem aos filhos por os não poder comprar", façamos com que o Natal seja todos os dias.
Um bom Natal, "És meu irmão, és meu irmão"!
Luso.eu | Jornal Notícias das Comunidades