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Em 1960 Calvino já antevia, na juventude do seu tempo, algo que se agudizou com o passar dos anos até hoje, e que distingue das gerações anteriores: uma juventude «entediada por saciedade e vazio interior», por oposição ao que havia antes, quando o tédio de não «saber o que fazer nem para onde ir» tinha mais a ver com «virgindade» que eu leio como inocência, e «vazio à volta».
Se a humanidade continua essencialmente a mesma, algumas coisas vão mudando, e isso até a literatura mostra, como uma espécie de barómetro. A propósito, refere a obra de Pavese, que na literatura italiana não teve seguimento, com o seu desespero, pois como muito bem observa Calvino, «até o sofrimento interior tem as suas épocas, a quem apetece sofrer, hoje?». Muito bem o vê, muito bem o diz e mais uma vez umas boas décadas depois, quase um século, continuamos a não ter lugar para a dor, para nenhum tipo de dor, da de dentes à da consciência, e no entanto, quanto sofrimento esta negação acarreta.
Por sua vez, o mesmo Calvino cujo retrato a desenho o livro ostenta no final, amorosamente “retocado” pelo lápis do bebé que gosta de espreitar para dentro dos nossos livros, os dos grandes, assombrando-se com tantas letras, diz ele a páginas tantas que talvez tenha chegado a hora de se aceitar como é, e de escrever apenas como lhe apetecer, ou como, acrescento eu, os bebés desenham. É o que tenho feito, desde que iniciei a escrita. Preço que se paga caro, mas como fica em conta esta carestia… se eu pensar no preço que teria de pagar se tivesse cedido…. Felizmente, houve um sonho que logo ao princípio me avisou, de forma clara, nunca eu tinha visto tão poderosa metáfora, de quase literal, e o aviso foi o de sempre obedecer ao impulso criativo e a nenhuma outra vontade. Quanto à metáfora, é demasiado forte para a descrever aqui.
Calvino conseguiu, sem penalização, e ainda bem, ou não teria chegado até nós, não repetir fórmulas, nunca se repetir. O sinal de divertimento era, para ele, fazer sempre coias novas. E como o conseguiu! Ao mesmo tempo que escrevia, ia pesquisando sobre si e compreendendo um pouco mais de si mesmo.
Comete, contudo, um equívoco, confundindo sucesso com confiança. Ao definir o escritor de sucesso como aquele que «acredita fortemente em si próprio, no seu discurso, na ideia que tem na cabeça, e vai pelo seu caminho fora seguro de que o mundo irá atrás dele», não distingue sucesso exterior do sentimento de sucesso. O escritor bem-sucedido pode não ter reconhecimento externo, pelo menos na medida a que nos habituámos, em quantidade. Um escritor pode corresponder àquela definição e não se importar muito se quem o segue é o mundo ou apenas um continente, e ainda menos do que isso, uma aldeia ou um clube. Ou um leitor. Esse escritor de sucesso a que me refiro segue o seu rumo e quando, por acaso, olha para trás, pode ver o mundo, uma cidade, um grupo, um casal ou uma criança.
Contudo, este sentimento de liberdade também ele o experimenta. Não só na carreira literária, mas também nas ideias, rejeitando «o doutrinarismo, a abstracção, o fideísmo, o catastrofismo, o ‘quanto pior melhor’», o que obriga, por vezes, a opor aos amigos que estima intelectualmente, «uma distância muito clara». No meio intelectual é preciso uma certa coragem para não seguir acriticamente o grupo. Ou porque já se partilhou das suas ideias, ou porque há afectos em causa, ou simplesmente pelo receio de não pertencer.
Foi o que aconteceu com ele, em relação ao seu habitat natural que era uma certa esquerda italiana, onde se encontrou em condição de isolamento, de exclusão. Contudo, quando dá a entrevista em que me baseio, no ano de 1984, afirma que esse sentimento de «não pertença» se acentuará com os anos e encorajará» a sua «tendência natural de ficar calado» ao ouvir «a inflacção das palavras e dos discursos»
É importante a distância, para que haja independência. Italo Calvino está absolutamente acima de qualquer suspeita relativamente a posições de direita, mas sabe do que fala. Um grande é sempre um grande, com ou sem séquito, sobretudo se este não depender da sua vontade.
Um dia, há uns bons anos, caiu-me ao colo o seu extraordinário livro intitulado Seis Propostas para o Próximo Milénio, e foi como se o Milénio me pedisse o conforto do embalo, enquanto me confortava, enquanto me embalava. Falou fundo em mim pela excepcional grandeza na aparente simplicidade. Não sei porquê, tenho-o junto da poesia. Hoje já estamos no próximo milénio e devíamos estar a preparar as nossas propostas para o próximo próximo. Mas teremos independência intelectual e ética para o fazer? Grandeza e simplicidade? E confiança? Afirma ele algo como a sua confiança no futuro da Literatura por saber que mais nada nos poderá dar o que ela nos dá, pela sua especificidade. Esta confiança no futuro da Literatura pode ser a confiança no Futuro da Vida. Precisamos dela, mais do que nunca. Da confiança. Da Literatura. Da Vida.
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