“Haja o que houver” a “Simpatia é quase amor”



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No final do ano passado, sai da Madeira, da minha casa, depois das férias de natal para voltar à minha vida citadina em Lisboa. Durante os primeiros dias adoeci. No início do ano apanhei uma gripe violenta que me debilitou e levou-me às urgências do Hospital de Santa Maria. Estive oito horas sozinha à espera de ser atendida, a padecer de febre na sala de espera, acompanhada apenas pelo livro “A Morte de Ivan Ilitch”, do Tolstoi. Durante essas largas horas, quando o mal-estar dava tréguas, lia e ia observado aquela sala de fragilidade humana febril.

Reconheci uma cara ao longe a acenar, mas não tinha a certeza de quem era. Acercou-se de mim e disse que era a rapariga que trabalhava na Padaria Portuguesa, a quem eu já tinha elogiado os olhos grandes verdes. Perguntou-me se estava tudo bem, e eu disse que sim, que estava com uma gripe. Acabou por me dizer que estava ali a acompanhar um familiar. Engraçado como as pessoas reparam em nós quando nós reparamos nelas, cogitei para os meus botões.

Depois daquela breve troca de palavras, passei para a sala de espera das urgências, e fazia o compasso para ser vista pelo médico. Estava a tremer e a morrer de frio. Uma auxiliar estava a passar e perguntei, “com o talento dos pedintes”, se era possível ter um cobertor para não sucumbir à aragem gélida. A mulher atendeu ao meu pedido e um senhor que estava à distância de duas cadeiras perguntou se também podia ter um. Ela ripostou, disse que não tinha mais, e notava-se pela sua voz, a altas horas da madrugada, que estava cansada e sem paciência para pedidos estéreis.

Eu estava abafada e olhei para o homem. Já tinha uma idade avançada, tinha umas botas de água e uma roupa que confessavam a sua vida campestre. Aproximei-me dele e dividi o meu quentinho, sem pensar em mais nada. A mulher voltou a passar por nós e perante aquele cenário em que estávamos os dois, lado a lado, abrigados por aquele calor humano decrépito, lá conseguiu arranjar um cobertor para o homem. Entregou-o em silêncio e a confessar algum arrependimento pela sua resposta ríspida. Pouco tempo depois chamaram o meu nome, fui atendida pelo médico e fiz análises. À saída para voltar para a sala de desespero das urgências, vi o homem a vomitar para um saco e num breve instante que os vómitos lhe permitiram, com algum desconforto, disse-me:

- Não me consegues arranjar água e lenços de papel por favor?

Eu tinha uma garrafa de água que já tinha terminado, mas não consegui ficar indiferente ao pedido daquele homem, tão desconhecido, mas tão íntimo ao ponto de dividirmos o calor, a nossa solidão e fragilidade no principal hospital da capital. Respondi-lhe:

- Já venho, não se preocupe.

Agarrei no meu cobertor, fui a casa de banho, enchi a garrafa de água, muni-me de papel e voltei para o lado dele. Dei-lhe água e limpei-lhe o rosto. Quando percebi que lhe dei algum alívio, deixei-lhe a água e o papel. Voltei para a sala das urgências. Como estava com dores no corpo e incapaz de estar numa cadeira, atirei-me para o chão e adormeci.

Algum tempo depois, veio o segurança acordar-me e dizer-me gentilmente que não podia estar no chão, que tinha de me ir sentar. Eu balbuciei que não tinha forças para ficar numa cadeira. Perguntou-me o nome e foi inteirar-se da minha situação. Disseram-lhe que já ia ser atendida. Levantei-me a muito custo, ele ajudou-me e sentei-me. Dois minutos depois fui chamada e entrei para falar com o médico sobre as minhas análises e receber a receita. Já não vi o homem. Ainda o procurei nos corredores, mas sem sucesso. Fui pedir uma justificação para faltar ao trabalho e apanhei um táxi às quatro horas da manhã para a minha casa.

Nunca esqueci aquele homem. Nem sei o seu nome. Depois de mais de um ano após este acontecimento, sentada na cadeira do pensamento, na minha varanda, já na Madeira, pergunto-me se tal como eu recuperou. Se tem alguém como naquele dia difícil, para lhe limpar a cara ou dar água quando as vicissitudes da vida nos desidratam. Estou a ouvir a música “Haja o que houver”, dos Madredeus e a pensar que no meio das nossas das dificuldades devemos sempre olhar para o lado. Afinal de contas, como a música do Gabriel o Pensador com a Adriana Calcanhoto, “Tás a ver”, a “simpatia é quase amor” e “eu preciso acreditar na comunicação”.

“Não há melhor antídoto para a solidão” até porque “a vida é feita de pequenos nadas” e “por mais que eu seja egoísta/ aprendi a dividir as minhas emoções e os seus efeitos/ sei que o mundo é um novelo, uma só corrente/ posso vê-lo pelos seus belos elos transparentes”.

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Cláudia Caires Sousa
Author: Cláudia Caires SousaEmail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.
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