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Já há muito tempo que não falava com o Gabriel.
Umas palavras de circunstância, uns acenos, e pouco mais. Desta vez foi diferente. Ele precisava de falar. De falar de bocados da sua vida que ainda o incomodavam. Precisava de desabafar, e eu fiz-me um bom ouvinte. Quando nos despedimos, era outro homem, mais leve, remoçado.
Durante muitos e muitos anos, Gabriel não viveu a sua vida, a vida é que o vivia a ele.
As alegrias muito raramente eram dele, tomava as dos outros como se lhe pertencesse, e acarinhava-as.
Vivia a vontade dos que amava como se fossem suas, anulando-se.
Aos poucos deixava de ser, sendo o que era expectável que fosse. O sorriso, que lentamente deixara de aparecer, não existia mais, nem mesmo como o do palhaço que ri com lágrimas grossas bem escondidas.
Os anos iam passando porque sim, o tempo parecia parado sem lugar para onde ir. Tornou-se transparente, até para ele. Sobretudo para ele, já que para todos os outros, já há muito que assim era.
De longe a longe, envergonhadamente, e cada vez com menos assiduidade, um pensamento rebelde, uma atitude descontrolada, um repente, um grito, um desaforo, faziam crer que nem tudo estaria perdido.
Um dia viu-a. Falou-lhe. Apercebeu-se de que se calhar havia esperança para ele.
Ela, por seu lado, viu-o, falou-lhe e apercebeu-se do que ele, tão bem, inconscientemente escondia.
Apaixonaram-se. Romperam convenções. Lutaram. Mais ela do que ele, ainda tão preso a anos e anos de prisões sem grades. Ela, forte. Ele de novo um aprendiz, a descobrir, a entender, a assimilar. Foi um processo lento, penoso, mas aos poucos compreendeu o quanto podia valer, e que para poder viver, teria de treinar o gostar dele mesmo.
Começou a procurar sentido na sua vida, sempre com a ajuda e o apoio dela. Não havia, da parte dele, uma ideia ou um pequeno pensamento quase não verbalizado, que ela não o incentivasse a concretizá-lo e a lutar por ele. E aos poucos foram surgindo os, há muito desaparecidos, desejos de fotografar, escrever, publicar, estando ainda num limbo, perdidos algures, os de desenhar, pintar, modelar. E foram-se concretizando, uma a uma, as vontades esquecidas ao longo de muitos anos.
Com tudo isto, foi, a par e passo, crescendo, a necessidade de meditar, a necessidade de uma solidão controlada, a necessidade de uma única companhia nessas alturas, a dela, ao mesmo tempo que desaparecia a necessidade de estar com gente, de festas, e de outras companhias. A vontade de estar com outros resumia-se a uma, quando muito, duas pessoas de cada vez, em conversa amena e se possível para pensar em conjunto. O silêncio passou a ser primordial nas necessidades diárias. Mais, muito mais do que qualquer alimento. A vida passou a apresentar-se cheia e gratificante. As opiniões alheias perderam a importância que sempre tinham tido, e passaram a ser, unicamente, as opiniões dos outros, que devem ser ouvidas com a atenção devida, e depois, estudadas e consideradas, ou não. A vida passou a ser muito mais interessante depois de ter passado a ser mais introspectivo. O amor subiu a um nível etéreo e os valores materiais, se bem que sempre necessários, passaram a não ser mais do que isso.
Enquanto esta evolução ia acontecendo com eles, ela muito mais evoluída que ele, muitos daqueles por quem ele sempre vergara a sua vontade, fizeram-lhes guerra. Surda, encapotada, às vezes miserável, enquanto compunham sorrisos falsos e usavam e abusavam da boa vontade deles, sempre presente.
Durou quase vinte anos, essa guerra, com altos e baixos, com mentiras e falsidades, demonstrando o quanto se pode ser mau com cara de bom, e quase sem que se conseguisse vislumbrar.
Um dia, ele viu.
Um dia apercebeu-se da enormidade de tudo o que se fora passando e fechou-se para esse mundo.
Hoje ele procura a paz, o perdão aos que lhe fizeram e ainda fazem mal, a felicidade com a sua alma gémea e com quem queira respeitar a sua vida e aceite os seus limites, e, essencialmente, evoluir enquanto pessoa.
Esta vida não se esgota aqui!
Luso.eu | Jornal Notícias das Comunidades