Neste Natal acompanhou a sua velha mãe à missa do Galo, que por motivos da pandemia se realizou ao ar livre no adro da igreja. Assistiu dando o apoio do corpo de homem maduro àquele que outrora o transportara dentro de si.
O Homem a Dias não frequenta qualquer Igreja ou crença, mas respeita-as a todas por igual. Quando é convidado pelo seu amigo hindu, também ele longe da pátria, pratica os rituais da casa do amigo. E se é convidado pelo seu amigo católico, antes da refeição dá graças a Deus, como o seu amigo.
Depois da missa, enquanto se afastava da igreja, o Homem a Dias deu consigo a repensar na questão que mais atenção lhe tinha despertado a Eucaristia. E que foi a afirmação, tantas vezes repetida e ouvida, de que Deus fez o Homem à sua imagem e semelhança. E começou a pensar na possível verdade de tal afirmação. O H. a D. gostava de perseguir a verdade até ao fim. Nada o entusiasmava tanto como perseguir um enigma. Pensou que a Verdade e o Erotismo se associam como a carne e a pele. Portanto, se a afirmação do celebrante era válida, quem lesse a Bíblia ou a ouvisse ler, só podia concluir o seguinte: em qualquer tempo e lugar Deus é a Humanidade no seu conjunto e na sua História, e só por defeito de análise, somos levados a imaginar o homem branco, europeu e ocidental. Um nativo americano, antes de Colombo (se lesse o nosso alfabeto) igualmente imaginaria um Deus com as características dos aztecas, ou noutro caso um Deus das pradarias do norte. O mesmo para um nativo africano. O mesmo para um nativo do extremo-oriente, ou dos mares do sul. Aqui, neste caso, como algumas tribos praticavam o canibalismo (talvez no pós-Apocalipse seja uma forma de a humanidade controlar a sobrepopulação!). O H. a D. pensou que logicamente desta forma Deus se auto-regulava.
A mãe, entretanto, tropeçara na calçada húmida, e o movimento do seu corpo fez o H. a D. concentrar-se nela para a apoiar. Com amargura, notou como os pisos das ruas, nas últimas décadas, foram desprezadas pelos poderes públicos em desfavor dos peões e melhoradas apenas tendo como benefício os automóveis e os automobilistas.
A mãe ia fazer noventa anos. Nascera no interior de Portugal. Com dezasseis anos rumara para o Porto para servir como Mulher a Dias em casa de umas pessoas vagamente conhecidas. Teve sorte, pois esta família (um médico já reformado e sua esposa, com dois filhos a viverem longe) tratou-a sempre com dignidade. Eram pessoas que tinham uma biblioteca com muitos livros. E nos tempos livres, Joana Dias (o nome da mãe do H. a D.) aprendeu a gostar da leitura. Gostava principalmente de ler os livros de Camilo Castelo Branco. Quando o último do casal faleceu, vinte anos depois, Joana Dias regressara à aldeia com um menino de seis anos que desconhecia o pai. Na aldeia, Joana distinguia-se das outras pessoas pelos modos mais suaves e algum requinte. O filho, o nosso Herberto Dias, aos onze anos, foi viver com uns tios na Guarda, onde fez o nono ano do Liceu e se tornou bancário.
Depois de refeitos do susto do tropeção na calçada, H. D. voltou aos seus pensamentos. E encontrou uma outra grande falha nas palavras do pároco e do seu rebanho. E que é a seguinte: os textos sagrados foram escritos e interpretados por homens. Mas a humanidade é composta por homens e mulheres. De modo que temos de perceber o Homem como uma manta de retalhos composta por dois géneros de muitas cores e identidades. Só assim se compreende que Deus tenha feito o Homem à sua imagem e semelhança.
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Colunista
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Manuel Silva-Terra nasceu na freguesia de Orvalho, Beira Baixa. É professor de Filosofia e Psicologia. Fundou a editora Casa do Sul e a editora Licorne; editoras dedicadas ao ensaio, à cultura regional e à poesia. Organizou sete antologias de poesia de várias épocas. Como autor tem uma dúzia de livros publicados.
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