
Dá-se o caso de habitualmente andar a ler, simultaneamente, vários livros, tendo recentemente encontrado em dois deles, referências a escritores de nós sobejamente conhecidos, feitas por outros escritores que o não são menos. Em Um Eremita em Paris, de Italo Calvino, colecção de textos marcadamente autobiográficos registados em diferentes cidades por onde andou, viveu, escreveu, visitou, fala de uma dessas cidades, profusamente documentada: Nova Iorque, onde convive em 1959 com escritores europeus, nomeadamente Hugo Claus, que descreve como:
«belga flamengo, 32 anos, começou a publicar aos 19 e desde então escreveu uma quantidade enorme de coisas, e é o mais famoso escritor, dramaturgo e poeta da área linguística flamengo-holandesa da nova geração. Muitas dessas coisas ele próprio diz que não valem nada, incluindo o romance traduzido em França e na América, mas é um tipo nada estúpido e antipático, um homenzarrão louro com uma lindíssima mulher actriz de revista (que conheci quando veio despedir-se dele à partida) e é o único destes três que leu muitíssimo e cujas opiniões são atendíveis. Quatro horas após o lançamento do primeiro Sputnik já tinha escrito um poema sobre ele, que saiu imediatamente na primeira página de um diário belga.»
O interesse desta e doutras passagens é ver o olhar, não o olhar oficial das revistas, das entrevistas ou mesmo dos leitores sobre alguns escritores, mas de um dos seus pares, neste caso, um muito especial entre eles.
Muito são os que lhe merecem a pena, nomeadamente os seus companheiros de viagem no transatlântico, bolseiros como ele e como Arrabal, de que fala com um humor demolidor, e o ausente, Günther Grass, que lamentavelmente teria tido de renunciar à bolsa por ter descoberto, ao tratar dos papéis para a viagem, que se encontrava doente de tuberculose. Mas em Hugo Claus me detive antes de passar para o outro livro, por haver aqui algo em comum, que é a Bélgica.
O outro livro, Ostende,1936, O Verão da amizade, de Volker Weidermann, é uma narrativa também em tom bastante crítico sobre o encontro de vários artistas e escritores, a maioria judeus, entre os quais Steven Zweig, na cidade belga de Ostende, como refugiados, mas fingindo que não se passa nada, como se estivessem em veraneio:
«Assim se passa a noite. Assim se esgotam as garrafas de licor, o ambiente é descontraído, embora tenso. Tem-se a sensação de que bastaria uma palavra desadequada para fazer explodir a animosidade aqui na mesa. Kish fala um pouco mais sobre Tempos Modernos, o herói não é Charlie, claro, o herói são os tempos modernos, a exploração dos trabalhadores, a vigilância generalizada, o Capitalismo da América como inimigo. E falam da greve geral na França e na Bélgica. Aqui, junto ao mar, não se nota nada, mas o país está paralisado.»
Ali junto ao mar finge-se que está tudo bem, mas… «bastaria uma palavra desadequada para fazer explodir a animosidade aqui na mesa». Imagine-se o que poderá acontecer a um nível mais amplo, mais político, ao nível de dirigentes de países em conflito…
Hoje, circulando por Lisboa, as esplanadas estão cheias de estrangeiros, erguem-se os copos em celebração de vida, as montras das livrarias ostentam livros como se tivéssemos séculos, milénios, para os ler. E no entanto… como expressou recentemente alguém com humor negro, mas talvez bastante realista, nunca estivemos tão próximos de ceder a nossa civilização às baratas. Ao pé disto, quase temos saudades da guerra fria, esse tempo de perigo tão controlado, tão quase teórico. E, no entanto, não temos alternativa senão reconstruir cidades, ajudar os corpos, consolar as almas, levantar os copos e escrever e ler os livros. Como se houvesse… amanhã.
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