Regresso a Antuérpia



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            Sexta‑feira, fim da tarde. Deixámos a mala no hotel e fomos jantar à pizaria San Remo. A decoração e os empregados de tez morena e sorriso largo chamavam um mundo mediterrânico que a geografia e as condições atmosféricas mantinham distante. As pizas mataram‑nos a fome, mas não o desejo de comer bem.

            Porquanto a Jūratė leva a cabo um trabalho fotográfico acerca do bairro chinês de Antuérpia, passámos a hora pós‑prandial na Van Wesenbekestraat, uma das ruas que dele fazem parte. De noite, as cabaias e os tangzhuangs rareiam, veem‑se poucos asiáticos. A rua parece ser feudo de africanos gingões e de negras impudentes. A meus olhos, eram especialmente fotogénicas as frontarias tintas de tons avermelhados que a luminária pública libertava. Tons que embeleciam — e de algum modo adunavam — edifícios que, vistos à luz do dia, são desgraciosos.

            No sábado, ainda antes do pequeno‑almoço, nadei fazendo uso de diferentes estilos, em particular o crol: aquilo que em idades de rija saúde era uma evidência foi ali motivo de júbilo, por causa das malfeitorias do corpo tenho alterado os meus critérios e propósitos.

            Despendemos várias horas no museu Middelheim, lugar onde tão bem se caldeiam arte, arquitetura e natureza. Escrevi a respeito dele noutro texto[1]. Depois desse giro, a Jūratė voltou a Bruxelas, obrigações de sortida espécie o impunham. Eu decidi ficar um dia mais. Queria visitar a catedral de Nossa Senhora e passear por ruas e praças cujo património arquitetónico não houvesse sofrido os ultrajes do tempo.

            Acontece que, depois de me despedir da Jūratė na gare ferroviária, senti saudade declinada em tristeza. Eu, que tanto gosto e preciso de solitude (chego a tê‑la por imposição idiossincrática). Eu, que aprecio o trato com mulheres, mas nunca quis o acasalamento só para «ter companhia». Eu, que sempre prezei a rédea solta do viageiro solitário, notei a falta da partilha.

            Jantei no China Star, restaurante que, sem cair em excessos ornamentais, honra o país a que foi buscar o nome. Bom serviço e boa manja, mas só fui capaz de comer metade da dose de arroz com frango que tinha pedido. E a noite pesou-me. Notoriamente, o espetro da Jūratė não me bastava. Achar‑me‑ia de algum modo sugestionado por Fernanda, livro de Ernesto Sampaio que lera havia pouco tempo?

            A manhã acende a luz e acalma o espírito desassossegado. Sentia‑me melhor e, depois do pequeno‑almoço, segui para o centro histórico.

            Deambulei por Meir, artéria nobre e vitrina de diversos estilos arquitetónicos. Lojas de várias marcas (WE, Zara…) estão instaladas nalguns dos seus imóveis com cachê. Sobressai a Stadsfeestzaal: tem douraduras bonitas e certo encanto de épocas pregressas, mas a conversão em espaço comercial roubou‑lhe charme. Naquele fim de semana deveras pendia para o sentimento e perdi‑me a pensar em amizades que a vida envenena: quando J. veio à Bélgica, encontrei‑me com ele num café da Stadsfeestzaal; agora, nem sequer lhe falo.

            Defronte da catedral, disseram‑me que nela decorria uma cerimónia religiosa e que a visita teria de ficar para mais tarde. Fui dar uma volta na Grote Markt, montra de arquitetura renascentista. Aí cravei a vista em casas das antigas guildas, na fonte de Brabo e na sede do município. No posto de turismo, a oferta costumeira, dirigida ao vulgo e não a quem almeje aprofundar saberes acerca da terra.

            A dita fonte evoca uma lenda que pode ter estado na origem do nome da cidade. Um gigante, Druon Antigon, cobrava direitos de navegação no rio Escalda e amputava uma mão aos nautas que recusassem o pagamento. Brabo, um soldado romano, lutou com Antigon, venceu‑o e atirou a mão dele para o rio. «Mão» traduz‑se por hand, «atirar» traduz‑se por werpen.

            Deambulei até chegar à praceta onde fica a igreja de São Carlos Borromeu. Na esplanada do bistrô BOHM & Berkel fui servido por um empregado que me tratou por dottore. Parecerei italiano? Simpatia a pensar na espórtula? Curiosamente, o que prendeu a minha atenção não foram os fastos barrocos da frontaria da igreja, mas sim os sapatos, com cordões azuis e padrões vegetalistas, que usava um homem abancado perto de mim. Sapatos em que o bom gosto cingia a exuberância.

            Depois visitei a catedral de Nossa Senhora, aí passei algumas horas. Terá sido edificada entre 1352 e 1521 (as minhas fontes divergem quanto ao ano em que terminaram os trabalhos de construção). Certo é que a respetiva feitura cruzou distintas fases do Gótico e isso explica que, em toda aquela trama de pedra, a nota sóbria conviva com a exornação refinada. Olhando‑a de fora, a igreja denota rica arquitetura, mas carece de harmonia. E irrita‑me um desassiso urbanístico: haver casario que com ela confina, desse jeito turvando a alma do admirador de magnos edifícios góticos.

            Há monumentos que ficam descaraterizados logo que são objeto de reforma. Aqui, os trabalhos que decorreram na segunda metade do século xɪx e no início do século xx reforçaram a matriz gótica do templo.

            O respetivo interior vale pelas peças de fino quilate que lá se encontram, entre as quais avultam quatro obras de Rubens (O levantamento da cruz, A descida da cruz, A assunção da Virgem Maria, A ressurreição de Cristo). Não vou escrever a propósito delas. Faltam‑me apetrechos de perito e o que pudesse dizer nada acrescentaria àquilo que o leitor descobrirá na internet ou em livro. Menciono somente duas composições, menos conhecidas, que muito apreciei.

            Em primeiro lugar, um conjunto de confessionários, de madeira de carvalho, construídos em 1713 por Willem Ignatius Kerricx e Michiel van der Voort, o Velho. Foram transferidos de uma abadia cisterciense para a catedral de Antuérpia, aqui estão adossados a uma das paredes laterais. O respetivo friso — com ornato vegetalista — e os medalhões com retratos de Cristo e de santos merecem nota, mas o que chama a atenção são as 24 esculturas antepostas aos tabiques. Além daquelas que figuram os apóstolos, há 12 estátuas de mulheres que simbolizam, inter alia, o arrependimento (a mulher tem uma mão no peito e a cabeça inclinada para baixo), o autoconhecimento (a mulher olha‑se num espelho) e a oração (a mulher transporta um turíbulo[2]). Imaginosos e de bom talhe, os confessionários formam um quadro consonante com a importância que a confissão teve noutras eras.

            Em segundo lugar, uma escultura de mármore branco que representa Nossa Senhora com o Menino Jesus. Do século xɪv, provavelmente é empresa de um artista que laborou em Liège, autor de várias madonas de mármore. Livros e folhetos enaltecem a elegância da composição. Vi uma obra grácil e agradou‑me o cair das roupas da Virgem, mas prezei sobretudo a ternura que ressuma do conjunto. Ela evola‑se, em especial, da expressão que se vê no rosto de Maria e do tocar dos dedos do Menino Jesus na cara da sua mãe.

            Gosto de arte, na catedral senti‑me fortunado. E mais feliz fiquei por voltar a Bruxelas e, de maneira presencial, restabelecer o círculo de afetos que me liga à Jūratė e à filha dela, a Arista.

[1] No museu Middelheim.

[2] Recorde‑se o Salmo 141.2: seja a minha oração como incenso na tua presença.

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Paulo Pego
Author: Paulo PegoEmail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.
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