Entre príncipes encantados e aquilo que o amor não é



Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!


            No Big Brother Famosos, Bruno de Carvalho destratou a sua namorada, Liliana Almeida. Deu mostras de ciúme doentio, tentou isolá‑la, intimidou‑a (chegou a agarrar o seu pescoço de maneira rude) e, como é próprio dos manipuladores, adotou uma estratégia de culpabilização da vítima. Esses atos podem configurar a prática do crime de violência doméstica (cf. artigo 152.o do Código Penal). A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género participou o caso ao Ministério Público e instou a TVI a tomar sem demora as medidas necessárias para pôr cobro à situação. A TVI não o fez e Cristina Ferreira — que já foi alvo de insultos sexistas — invocou o dever de imparcialidade, alegou que o papel da televisão é entreter e afirmou que «só o amor pode resolver até as coisas mais condenáveis». Bruno de Carvalho acabou por ser afastado do Big Brother Famosos em decorrência da votação dos telespetadores.

            Mal andou a TVI, mal andou Cristina Ferreira. Na busca infrene de audiências e do ganho pingue, monetizaram o caso — fizeram‑no render até à «gala» — e contribuíram para uma certa normalização dos maus‑tratos físicos e psíquicos no seio do casal. O jogo é perigoso: a televisão ajuda a formar perceções coletivas, mormente no âmbito das relações sentimentais, a sociedade portuguesa é machista e o lucro é uma abstração, atrás dela se pode correr até ao infinito.

            É legítimo perguntar: se em causa estivesse um homicídio, Cristina Ferreira continuaria a defender que só o amor pode resolver as coisas mais condenáveis? Dans l’air du temps, o artista que proferisse declarações com teor idêntico às da apresentadora, diretora, administradora e acionista seria cancelado.

            Nem se diga que cabia a Liliana Almeida denunciar os abusos. A violência doméstica é crime público, o procedimento criminal não depende de queixa da vítima, o Ministério Público inicia o processo depois de ter notícia do crime (por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia — artigo 241.º do Código de Processo Penal). De resto, amiúde as vítimas não se apercebem de que o são. Isto vale, nomeadamente, para as mulheres que vivem nos enleios da romantização das agressões e agem motivadas pelos indezes daquilo que consideram ser amor.

            Sei bem o que é a violência doméstica, conheço a sua trivialização. Tanto uma como a outra doem. As sevícias nunca dimanam do amor e da benquerença, são atos abjetos, associados a formas mentais ominosas. Sic et simpliciter.

            A desculpabilização da violência doméstica encontra paralelismo naquilo que durante muitos anos sucedeu — e ainda sucede — no universo do futebol. Sob os mantos da paixão clubística, foram criadas zonas estranhas ao direito (em especial para dirigentes e adeptos). E não deixa de ter similitude com a garantida a professores que, ao abrigo dos critérios de antiguidade e escudando‑se em apregoados juízos científicos, verminam no meio universitário.

            Os príncipes encantados in spe deveriam ouvir O navio dela, de Manel Cruz. Descobri tal canção graças a um afixo — ensejado pela susodita afirmação de Cristina Ferreira — que Daniel Oliveira, jornalista do Expresso, deixou no Facebook. Na sua letra se assinala que «A minha mulher não é minha/É da cabeça dela/Mesmo achando que sim/Não precisa de mim/Isso é o que me agrada nela//Ela é o capitão do seu navio». Se tiverem bem presentes estes trechos e não reificarem as mulheres, esforçar‑se‑ão por ser atenciosos e amáveis, atributos que elas muito prezam.

            Termino com duas notas de índole diversa.

            O programa da disciplina de Educação para a Cidadania inclui uma parte dedicada à prevenção de relações abusivas e isso leva‑me a acreditar que, no futuro, diminuirá a tolerância em matéria de violência doméstica e de violência de género.

            Este arrazoado não me impede de apreciar BDSM: as práticas que cobre enriquecem a vida de um casal. A violência tem o acordo dos envolvidos, obedece a regras definidas com antecedência e, se surtir desconforto, logo acaba mediante o uso da palavra de segurança.

Luso.eu - Jornal das comunidades
Paulo Pego
Author: Paulo PegoEmail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.
Para ver mais textos, por favor clique no nome do autor
Lista dos seus últimos textos



Luso.eu | Jornal Notícias das Comunidades


A sua generosidade permite a publicação diária de notícias, artigos de opinião, crónicas e informação do interesse das comunidades portuguesas.