Em Vila Franca de Xira, sentir dual



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            Vila Franca de Xira. Em aglomerado urbano que golpeia a estética, colhi as primeiras impressões de boa plástica nos painéis de azulejos que ornam a estação ferroviária e o mercado municipal. Deles destaco os que reproduzem motivos ribatejanos. Na gare, as imagens chamam figuras — campino, lavadeira — e atividades tradicionais — criação de gado, pesca, produção de vinho, apanha da fruta, cerealicultura. Em esquinas e fachadas do mercado, a elegância e o saber azulejares correm declinados em cenas, paisagens e notabilidades da região; os torreões que marcam os acessos ao interior levam estampas evocativas das quatro estações.

            O mercado não é grande e abriga alguns cafés, palcos de conversas e fraternizações durante a manhã do sábado em que o visitei. Para além da clara vertente interesseira, lá enxerguei jucunda dimensão humana e convivial. Se com isso poli o espírito, com um enorme salmão e crisântemos de várias cores arregalei os olhos.

            A Igreja Matriz e a Igreja da Misericórdia estavam encerradas. Mal parei diante delas e aqui as mato com abreviatura que importo da língua francesa: r.a.s.

            O pelourinho pede atenção. Numa sequência de anéis e escócias assenta bonito fuste cilíndrico com estrias, decorado com flores e dividido em duas partes. Sobre o capitel, peças várias e remate com a esfera armilar e a cruz de Cristo.

            O Museu do Neo‑Realismo funciona num bloco concebido pelo arquiteto Alcino Soutinho e a sua localização tem todo o cabimento: encontra‑se numa das zonas emblemáticas do neorrealismo.

            Além da faina no campo, já havia, no concelho de Vila Franca de Xira dos anos trinta do século xx, unidades fabris de relevo (Soeiro Pereira Gomes foi empregado de escritório numa cimenteira em Alhandra e lidou com o proletariado industrial). Na terra e na fábrica, o presente e o amanhã não cantavam e era ver adultos, crianças, Ginetos e Gaitinhas explorados, sujeitos a péssimas condições de vida e de trabalho. Sobejava, pois, matéria para provocar aqueles que com isso se indignavam, para os concitar a escrever.

            Lembremos diligências e textos — publicados, por exemplo, no Mensageiro do Ribatejo — de quem esteve ligado ao Grupo Neo‑Realista de Vila Franca e levantou a pena com o fito de denunciar cruezas de diversa ordem. Nele se associaram, entre outros, Alves Redol, Jorge Reis, Arquimedes da Silva Santos, Garcez da Silva, Bona da Silva, Carlos Pato, António Dias Lourenço e Mário Rodrigues Faria.

            Quando me cinjo às obras que o Museu do Neo‑Realismo apresenta permanentemente, logo penso na pintura mural de Nuno San‑Payo, de 1955. É espécime no qual o manejo de tópicos de usança neorrealista, o campesinato e o trabalho no âmbito do setor primário, resulta em criação de bom calibre estético.

            Neorrealismo é humanismo e o museu conta, no seu acervo, com uma latitudinária coleção de fotos intitulada A família humana. No meu éden das artes, tem lugar cativo a fotografia humanista, a obra de gente como August Sander, Lewis Hine, Walker Evans, Dorothea Lange, Marc Riboud e Manuel Álvarez Bravo. A mostra de imagens que integram a dita coleção permitiu‑me conhecer o talento de vários fotógrafos, dentre os quais saliento Kees Scherer: Engraxador, de 1959, foto tirada em Vila Franca de Xira, é um must.

            A classe popular mora no âmago das preocupações neorrealistas. Estratos seus e o Zé Povinho foram convocados para Representações do povo, exposição de artes plásticas que dá a ver feituras de Domingos António Sequeira, Rafael Bordalo Pinheiro, Augusto Gomes, Tereza Arriaga, Graça Morais e Jorge Pinheiro. Com respeito e emoção assinalo O guarda, o pão e o camponês, óleo de Jorge Pinheiro que nasceu de uma imperiosidade: reagir ao infausto acontecimento que teve lugar, em 27 de setembro de 1979, numa herdade de São Cristóvão (Montemor‑o‑Novo), durante a entrega de terras, máquinas e gado a Manuel António Padeira, o antigo proprietário da herdade. A GNR matou dois trabalhadores rurais, António Casquinha e João Geraldo, o «Caravela». O guarda, o pão e o camponês é um hino à benquerença e à grandeza de alma — sentados à mesa, dois homens, é crível que sejam da mesma extração social; mas a sua postura é diferente, o guarda retrai‑se, o camponês, de braço estendido, parece oferecer‑lhe metade do pão servido na mesa.

            Escrevi acima que é apropositada a localização do museu em Vila Franca de Xira. Atualmente, e já nos achamos na terceira década do século xxɪ, as desigualdades sociais são mais obscenas do que alguma vez o foram e por todo o território nacional grassa a pobreza. Hoje, com desgosto e indignação o digo, todo o torrão luso merece o desatar da escrita de teor neorrealista. Enfim, haja enxundiosos montantes para o palco‑altar que será usado nas Jornadas Mundiais da Juventude e para os pagamentos à moda da TAP.

            Dando sequência a sugestão de um rececionista do meu hotel, fui ao restaurante O comboio. Consultei a ementa e não topei prato diferenciador, caraterístico da terra. Interpelei a senhora que me acolheu e ela replicou: «Não nos metemos nisso da gastronomia.» Como se propor especialidades locais fosse engajamento «nisso da gastronomia»…

            Acabei por refeiçoar n’O retiro e aí recebi um mimo da culinária vila‑franquense, torricado com lascas de bacalhau. O torricado é pão torrado que leva azeite, sal grosso e uma esfregadela com alho.

            Depois de uma passeata em zona ribeirinha e de apreciar o moderno edifício da Fábrica das Palavras, projetado pelo arquiteto Miguel Arruda e sito em local onde laborou uma fábrica de descasque de arroz, contemplei alguns símbolos da paixão pela tauromaquia: a Praça de Touros Palha Blanco, as esculturas que exaltam o forcado e o campino, os monumentos funerários erguidos para honrar a memória do matador José Falcão, do cavaleiro José Mestre Baptista e do forcado Ricardo Silva, o «Pitó». Gostei das linhas e do colorido do tauródromo, achei expressiva a obra que celebra o forcado, impressionaram‑me os traços e a pompa do mausoléu devotado a José Falcão.

            Por implicarem o sofrimento de um animal senciente, por representarem entretém à custa do cornípeto, lastimo a existência de touradas. Mas confesso que, em Vila Franca de Xira, andei acossado por sentimentos que tinham cabeça de Jano. Falar do redondel lustrava a cara de pessoas com quem conversei. Vascoleje‑se a cidade ou o concelho e sempre sai um mugido. Ali, o universo taurino é definidor. Há mesmo uma escola de toureio e dezenas de tertúlias tauromáquicas. Nas minhas construções mentais, toureio e neorrealismo são fatores constitutivos da identidade vila‑franquense.

            Juízo geral? Idealizo o fim das touradas, não imediato, antes com um vagar que acompanhe mudanças de mentalidades e que permita a reconversão dos que delas dependem.

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Paulo Pego
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