Em Borgloon



Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!


            No primeiro de janeiro, eu e a Jūratė fizemo‑nos às lhanuras belgas e rumámos para Borgloon, no Limburgo. Animava‑nos a vontade de ver obras de arte que, no âmbito do projeto pit, estão dispersas pelo espaço público do burgo e dos seus arredores.

            O GPS dirigiu‑nos para um caminho, ladeado de canaviais, onde um grupo de flamengos celebrava o ano novo com champanhe. Escovei‑lhes o ego nacionalista — saudei‑os em neerlandês — e perguntei‑lhes, em inglês, pelo principal cemitério da terra (aí se encontra Memento, de Wesley Meuris, uma estrutura de aço, de cor branca, com forma circular e duas aberturas que permitem aceder ao respetivo interior). Tomámos a direção que nos indicaram e achámos o campo‑santo.

            A supradita obra evoca o recolhimento que se segue ao enterro de pessoa benquista e com ganho se diferencia do resto do cemitério. Admito que a família lá dentro reunida após um funeral perceba recato e algum género de coesão solidária. Memento não é do outro mundo, mas materializa ideia original. Influenciado pelo contexto e pela disposição das chapas salientes, enquanto ali estive vi‑me num columbário. Não sei se isso corresponde ao propósito de Meuris, de qualquer modo foi o que senti.

            Fomos depois à «igreja transparente», localizada em zona campestre e grande chamariz de Borgloon. A custo descobrimos sítio para aparcar e deparámos com dois funcionários municipais picuinhas que andavam na caça à multa e à felicidade alheia. Lastimei a sua sorte: despender parte do primeiro dia do ano em semelhante zelosia.

            Eurítmica, a «igreja transparente» é uma instalação com embasamento de betão e chapas de aço de cor castanha arrumadas de maneira a reproduzir o talhe de uma igreja local. Entre as chapas estão interpostos colunelos, também eles de aço. Concebida por Pieterjan Gijs e Arnout van Vaerenbergh, arquitetos da geração Y, o seu título oficial, Reading between the lines, ajusta‑se a obra através da qual se pode observar uma área vasta. No meio de muitas leituras, houve quem nela enxergasse referência à perda de fiéis e às igrejas vazias. A ideia é meritória, o resultado é notável. Demorámo‑nos dentro e fora do templo e, na esperança de o termos só para nós, de o gozarmos sem estorvo visual ou sonoro, retardámos a partida. Não conseguimos o que pretendíamos, pois atrás de uns mirones vinham outros.

            Os textos laudatórios repisam — há motivos para o fazer — a integração da igreja naquele todo essencialmente bucólico. Eu gostei sobretudo do seu jogo com o céu, de em contrapicado ver a que ponto ela parecia libertar nuvens para um fundo azul.

            Não bastasse tanta dádiva, ainda tivemos direito a um sol poente da cor do fogo.

            Reading between the lines não tem os pergaminhos da história e talvez nunca venha a ser objeto de estudos eruditos, mas o certo é que, nesta hora e na Bélgica, é o meu fragmento de arte favorito.

            O anoitecer inviabilizava a visita a outros trabalhos expostos no quadro do projeto pit. A fome e a curiosidade que em nós lateja guiaram‑nos ao centro de Borgloon para giro adicional. Num takeaway apenas fui capaz de pedir batatas fritas. O medo da covid‑19 multiplicou as cautelas e as reservas que ponho na minha ligação com o mundo e eu sabia que, não tocadas por mãos nem por luvas, as batatas seriam recolhidas com uma pá e postas no pacote que dali haveria de levar. Mais afoita, a Jūratė devorou um kebab servido em pita.

            O «estilo mosano» (na designação ambígua, o «Renascimento mosano») desenvolveu‑se, mormente no século xvɪɪ, em regiões pelas quais corre o rio Mosa. Merendámos sentados nos degraus do soco do pelourinho, assim juntando aos mimos para o estômago um regalo para a vista: diante de nós, o edifício da câmara municipal, que em si reúne elementos caraterísticos desse estilo, a saber, o uso de tijolo e de calcário, o telhado de ardósia inclinado, a lucarna, a janela dividida por travessa e mainel. O escuro impediu‑nos de apreciar minúcias arquitetónicas, mas recebemos a nossa compensação graças às luminárias de Natal do frontispício, chamativas e denotadoras de bom critério.

            A volta pós‑prandial levou‑nos à igreja de Santo Odolfo, de traço românico e com torre sineira gótica. Aí assistimos a uma missa. Não entendemos neerlandês e apenas por causa do efeito refetivo ficámos até ao fim. Reading between the lines já me fizera fã de Pieterjan Gijs e de Arnout van Vaerenbergh e um acessório no interior da igreja de Santo Odolfo veio roborá‑lo. Fruto de ideia da mesma dupla, do intradorso de vários arcos pende Halo, um grande anel dourado que trespassa a nave central, as laterais e o coro (sito na parte da frente da capela‑mor). Para os fiéis, só havia cadeiras na zona da nave principal que o anel de cima cingia e isso fez‑me sentir mais perto das outras almas que assistiam ao ofício. À semelhança do que sucede em Memento, o círculo aproxima as pessoas. Os advogados do diabo, já se vê, dirão que, se houver assentos fora da área correspondente ao anel, quem os ocupar poderá perceber apartamento.

            Recompostos, encetámos o regresso. O percurso reservava‑nos uma surpresa. Quando atravessámos a aldeia de Vechmaal, não vimos sequer uma luz nas casas, nos outros edifícios, nos candeeiros de iluminação pública. A contrastar com o negrume, apenas fiadas de luzes brancas nas árvores de Natal dos jardins das vivendas. Coincidência ou arranjo entre vizinhos?

            De novo em Bruxelas, felizes ao desfiar o dia, depressa acertámos um retorno a Borgloon.

Luso.eu - Jornal das comunidades
Paulo Pego
Author: Paulo PegoEmail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.
Para ver mais textos, por favor clique no nome do autor
Lista dos seus últimos textos



Luso.eu | Jornal Notícias das Comunidades


A sua generosidade permite a publicação diária de notícias, artigos de opinião, crónicas e informação do interesse das comunidades portuguesas.