Sobre a Impotência de um Sistema



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Num dos últimos artigos aqui publicados foquei-me nas plantações de café e na sua relação com o colonialismo e meio ambiente. Escrevi sobre a História desta planta, sobre a sua situação presente e sobre o futuro do mercado.

Passado um ano sinto que, para além de justo, é necessário dar uma nova luz a este tema, e faço-o não só porque importantes desenvolvimentos ocorreram nos últimos meses, mas também porque manifestamente errei na análise feita ao panorama global do mercado cafeeiro.

Há um ano, sublinhava as disparidades existentes entre a realidade sul-americana e a africana, e os problemas particulares e sempre presentes nesta última. Hoje, é neste mesmo ponto que reconheço as limitações da minha análise: o que separa as realidades da América do Sul, África e Sudeste Asiático não é equiparável aos denominadores comuns que as unem – a precariedade e a exploração.

O café não é a exceção à regra, é a regra em si. Caso existam dúvidas disto atentemos, por exemplo, nas semelhanças deste com as plantações de cacau.

No início de 2022, a Nestlé e outras 6 multinacionais foram acusadas de utilização de mão de obra infantil para a apanha de cacau. Em 2020, a Nespresso (também detida pela Nestlé) e a Starbucks foram denunciadas pela mesma prática na apanha de café. Está na ordem dos milhões o número de crianças que todos os anos põem de parte a sua infância para laborar nas plantações, em jornadas de trabalho que chegam às 48 horas semanais.

Porquê o trabalho infantil? Porque as multinacionais que capitalizam no trabalho destas crianças são as mesmas que praticam verdadeiros salários da fome para os agricultores. Isto deve-se, principalmente, ao facto da maioria dos produtos nestas empresas ser obtido a partir da agricultura familiar: cerca de 28 milhões de famílias em todo o mundo dependem do cultivo de café para conseguirem sobreviver, e é nesta situação profundamente debilitada que permanecem sujeitas aos pagamentos que o mercado define.

Convenientemente, estes valores encontram-se sempre muito próximos dos custos de produção dos agricultores. Várias vezes, o montante pago é até igual àquele requerido para a produção de café ou cacau, tornando os ganhos destas famílias praticamente inexistentes.

Para fugir à ameaça da pobreza, a única solução ao alcance da agricultura familiar é intensificar a produção, de forma a obter uma margem de lucro que lhes permita sobreviver. Na ausência de capital financeiro que possibilite desenvolvimentos técnicos e tecnológicos, recorrer aos restantes elementos familiares para aumentar a produção torna-se inevitável.

Na agricultura comercial de larga escala a situação é ainda mais intensa. Por exemplo, na Guatemala a necessidade de escapar à miséria origina todos os anos um fluxo interno de trabalhadores em direção às grandes quintas de cacau e café, movimentos em massa nos quais se encontram milhares de crianças entre os 5 e os 15 anos.

É também a exploração na agricultura comercial que dá vida a uma série imensa de outros problemas: agressões a uma base diária, exposição a substâncias tóxicas, abusos sexuais recorrentes e o tráfico de menores, são questões diretamente ligadas ao mercado do café e do cacau e à utilização de crianças nas plantações.

Em 2021, oito crianças apresentaram uma queixa contra a Nestlé, Mars e outras multinacionais por utilização de mão de obra infantil nas plantações de cacau. Os jovens, de nacionalidade maliana, afirmam terem sido retirados da sua terra natal e transportados para a Costa do Marfim, onde foram obrigados a trabalhar durante anos sob condições deploráveis e sem direito a qualquer pagamento. Afirmam ainda que, como eles, há milhares de outras crianças no mesmo estado.

Podemos não ver a escravidão, mas ela está viva, e bem viva.

Apesar de existir um número imenso de problemas relacionados com estes mercados, a questão de base que dá origem a todos eles é uma, e só uma: a cartelização das multinacionais no setor agrícola das regiões produtoras de café e cacau. Apenas um grupo reduzido de empresas opera nestas zonas a uma larga escala, as quais aproveitam a sua posição de exclusividade para acertarem os montantes pagos aos agricultores.

Esta cumplicidade entre a Nestlé, Mars e outros grupos para a definição de salários miseráveis foi evidente quando, em 2020, a Café for Change, uma organização sul-americana dedicada à luta por salários dignos no setor do café, apontou o modelo de negócio praticado por estas marcas como a principal causa da exploração e do trabalho infantil.

A resposta da Nespresso? Afirmou que, de entre todas as empresas na região, era aquela que pagava os salários mais elevados.

É esta fixação de salários da fome para os agricultores que, consequentemente, os obriga a incluir os filhos no trabalho. É dela que surge, paralelamente, o tráfico de humanos e a escravidão infantil, como forma de minimizar os custos de produção das grandes plantações e, em resultado, as demais barbaridades acima mencionadas.

Neste preciso momento, as alterações climáticas ameaçam a continuidade da atividade agrícola em todo o mundo. Apesar de pouco ou nada terem contribuído para isto, países como a Guatemala, a Indonésia ou o Uganda correm o risco de perder a sua capacidade produtiva no café e no cacau.

Contudo, as exigências das multinacionais não abrandam, assim como não abranda a necessidade das famílias em colocar comida em cima da mesa. Na ausência de uma mudança radical a resposta será, inevitavelmente, a mesma: a intensificação dos meios de produção existentes.

Por consequência, agudizar-se-á também a exploração dos trabalhadores e a utilização de mão de obra menor de idade. Aprofundar-se-ão ainda graves problemas ambientais ligados à produção agrícola, como a erosão de solos, a poluição de cursos de água por pesticidas e herbicidas, e a destruição maciça de ecossistemas.

É neste campo que se deve ainda indicar o papel negativo que a União Europeia desempenha, a qual, num passado muito recente, tentou forçar a entrada em vigor de um acordo de livre comércio com a MERCOSUR, que não incluía qualquer salvaguarda para os direitos dos trabalhadores, desenvolvimento sustentável ou proteção do ambiente. A existência deste tratado não só valida a exploração humana e ambiental existente no continente sul americano, como, sem qualquer sombra de dúvida, a intensifica.

Descartando em absoluto o que disse há um ano, sublinho uma vez mais que, ao contrário do que várias figuras defendem, estas não são questões que se possam cingir a um ou dois países em específico. Para além de serem transversais a todos os que foram referidos anteriormente, poderíamos ainda mencionar o Brasil, Burkina Faso, Costa do Marfim, Colômbia e tantas outras nações que padecem dos mesmos problemas.  

No início dos anos 70 do século passado, Eduardo Galeano publicava o famoso livro “As Veias Abertas da América Latina”, onde descrevia precisamente estes salários da fome, a exploração das populações no sul global e a extração predatória dos seus recursos naturais por parte destas multinacionais. Cinquenta anos depois, o cenário permanece essencialmente inalterado.

Tudo o que foi referido nos últimos parágrafos, todas as atrocidades e exploração, não são uma externalidade do sistema económico em que vivemos, são um sintoma. E este artigo é sobre a impotência deste mesmo sistema na altura de lhes dar uma resposta.

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Ricardo Dantas
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